Entre a Síndrome de Estocolmo e a servidão corporativa
Um pequeno tratado sobre a humilhante condição do RH sob o tacão do empresário brasileiro
É um mistério digno de uma tragédia grega como, no Brasil, o setor de Recursos Humanos — este que deveria ser o pilar da dignidade laboral, o guardião da ética corporativa, o último bastião da racionalidade humanista em meio ao caos empresarial — tenha se transformado em uma espécie de escravo doméstico das vontades caprichosas de seus superiores hierárquicos. O RH, meus caros, jaz prostrado. Não ajoelha apenas: rasteja. E rasteja, muitas vezes, com currículo invejável, mestrado na Europa e alma em frangalhos.
O que deveria ser o coração da cultura organizacional — o centro nervoso da inteligência emocional corporativa — converteu-se, no Brasil, num apêndice ornamental do patrão. Um enfeite burocrático, protocolar, um bibelô que sorri durante o desastre. É a palhaça emocional da empresa, pintando a cara com eventos motivacionais enquanto os operários do conhecimento são moídos na engrenagem do “precisamos entregar resultado”.
A tragédia maior é que, por trás de cada plano de cargos e salários, de cada formulário de feedback bidirecional, de cada PowerPoint insuportavelmente colorido com palavras como sinergia, resiliência e mindset, encontra-se a sombra do dono da empresa. E é bom que se diga: o empresário brasileiro médio — esta entidade um tanto quanto grotesca que mistura megalomania com ignorância estratégica — não quer um RH, quer um capataz com fala mansa. Alguém que tranquilize as massas enquanto ele pratica sua necropolítica motivacional disfarçada de gestão.
Este “líder visionário”, que lê biografias de bilionários com a mesma devoção com que um seminarista lê Santo Agostinho, não entende de gente. Entende de lucro, entendeu de Excel, e entende de como dizer “não há verba” em cinco idiomas diferentes. Ele quer que o RH sirva café e tape o buraco do asfalto com positividade tóxica. E o RH serve, com a polidez de um mordomo inglês que sabe que qualquer desvio de conduta resultará numa demissão sumária sob a alegação de “alinhamento cultural inadequado”.
A máquina é perversa. O RH não recruta, não seleciona: filtra. Filtra os “não-problemas”, os que jamais questionarão, os que se adaptarão ao absurdo com a resignação bovina que é o sonho secreto de todo empregador autoritário. E quando o funcionário — este ser cada vez mais exaurido e adoecido — ousa reivindicar qualquer sombra de humanidade, o RH aplica a fórmula sagrada: escuta ativa + anotação num caderno invisível + encaminhamento ao nada. Nada será feito. Mas será feito com afeto, com cuidado, com aquela entonação passivo-agressiva de quem finge empatia enquanto apaga seu nome do organograma.
E como esquecer da nova moda do RH: a espiritualização da servidão. Se antes bastava dar vale-refeição e uma festa de fim de ano com refrigerante quente, agora o RH também virou pajé corporativo. Traz coach, traz palestra de gratidão, workshop de propósito, aromaterapia com cheirinho de sálvia… Tudo para tornar suportável o insuportável. É uma espécie de catequese emocional para que o trabalhador ame sua cruz e ainda poste no LinkedIn com a legenda: gratidão por fazer parte dessa jornada.
Mas a realidade é dura, e a hipocrisia corporativa não poupa nem os bem-intencionados. O RH que tenta — que ousa defender o equilíbrio, que reivindica justiça, que combate assédio, que propõe pausas — logo é enquadrado, enquadradíssimo, como “pouco alinhado com os objetivos estratégicos da organização”. E sabe-se bem o que isso significa. Na dúvida, um PDI. Na reincidência, a demissão “por reestruturação”. E lá vai a alma do RH, mais uma vez, entrar em luto.
No fim, o que sobra é a constatação amarga: o RH é um departamento que nasceu para proteger gente, mas vive para proteger o negócio. É uma ironia perversa que aqueles que escolheram uma profissão baseada no cuidado com o outro acabem se tornando intermediários da violência simbólica — e às vezes literal — que permeia o cotidiano empresarial brasileiro.
Talvez um dia a história os redima. Talvez, daqui a cem anos, um novo tipo de empresa floresça, guiada por valores autênticos, por líderes que estudaram filosofia e não apenas o valuation. Até lá, o RH continuará a escrever políticas de diversidade enquanto o dono da empresa faz piada homofóbica no happy hour.
E se um dia você vir um profissional de RH chorando no banheiro, em silêncio, enquanto revisa as metas do trimestre… não o julgue. É só alguém tentando ser humano num sistema que considera a humanidade um custo excessivo.